09/08/2017

Cláudio Duarte

“Uma promessa não desfaço”

Cláudio Duarte
“Uma promessa não desfaço”
Jogador de história inconfundível com a camiseta do Inter, ex-técnico campeão pela dupla Gre-Nal, faz casuais visitas ao Vale do Taquari. Na última, conversou com a equipe da Revista Encontro com o Esporte. Ele falou um pouco sobre sua trajetória, conceitos, atual momento pessoal, do futebol gaúcho e brasileiro
Uma memória incrível. Não foge das perguntas, mesmo das mais impertinentes, e estas chegam em palavras fortes e pontuais, às vezes com o tom de voz mais alto, outras em meio a sorrisos nostálgicos. Cláudio Duarte conversou com a reportagem da Revista Encontro com o Esporte no início de agosto, numa das visitas ao filho Diego, que mora em Lajeado. No meio do “encontro”, precisou atender telefonemas. Eram rádios da capital gaúcha, querendo saber sua opinião sobre a situação do Inter, o qual Falcão tinha acabado de assumir, mas já sentia a pressão do momento. Nas conversas de bastidores, rolava a informação de que Cláudio Duarte, ex-jogador e técnico do Inter, poderia mais uma vez assumir o clube ou mesmo ser auxiliar do ex-parceiro de time. “Claudião”, como por muitos ainda é chamado, é taxativo na resposta: “Não!”. E justifica: “Depois daquele quase fatídico 2002, quando acabou aquele jogo contra o Paysandu, eu afirmei que nunca mais voltaria a ser técnico do Inter. Quero ser lembrado para sempre como o técnico que livrou o Inter do rebaixamento. Eu assinando um papel, documento talvez até possa rasgar; eu dando a palavra, não. Uma promessa não desfaço”.
Para uma das rádios, faz uma complementação. “Como dirigente, já trabalhei no Inter (foi supervisor técnico no tricampeonato brasileiro de 1979) e talvez aceite de novo. E de outros clubes, como estamos inteiro de novo, podemos conversar sobre tudo”, alerta ele, que também teve duas passagens pela Arábia Saudita e outra pelo Bahrein.
Histórico
Cláudio Roberto Pires Duarte nasceu na cidade gaúcha de São Jerônimo em 9 de maio de 1951, em área que hoje pertence a Charqueadas. “Todos os meus amigos ficaram por lá para trabalhar nas minas de carvão. Eu saí para jogar bola. Talvez seja isso que me mantenha vivo até hoje.” E, hoje, aos 65 anos, mantém como marca registrada o bigode, que carrega desde a época de jogador. Lateral direito do Inter entre 1971 e 1977, onde atuou ao lado de jogadores fantásticos como Falcão, Lula, Figueroa e Manga, encerrou a carreira precocemente, aos 26 anos, por causa de uma contusão. Isso o ajudou a ser um dos raros exemplos de atleta de uma camiseta só na carreira. Orgulha-se ao citar o fato de ter sido um dos jogadores que ajudaram a fundar o sindicato da categoria.
Como técnico, começou cedo. E logo no Beira-Rio, onde assumiu o clube em 1978, um ano após pendurar as chuteiras. Dirigiu várias equipes do exterior e do Sul do país, apesar de ter-se destacado mesmo nas casamatas do Internacional e do Grêmio. No rival do clube que o revelou, iniciou a hegemonia tricolor na Copa do Brasil, em 1989. Trabalhou, também, no Corinthians, Fluminense, Juventude, Paraná, Avaí, Ceará e Guarani, entre outros. A última equipe que treinou foi o Brasil de Pelotas, em 2009.
Tem, hoje, residência fixa em Porto Alegre. Divorciado, eventualmente faz visitas aos filhos Diego (34) e Camila (38) e, também, a dois netos no momento. Apesar de ser conhecido também por suas análises de futebol, tanto que muitas vezes atuou como comentarista de TV e das principais rádios esportivas gaúchas, hoje não está vinculado a nenhuma rede jornalística. “Os caras só se ‘aproveitam’ e estão sempre me convidando para debates, comentários de vez em quando e me convidam”, diz, brincando. Por sua experiência e história nos gramados e vestiários, é rotineiramente convidado a dar palestras motivacionais. “Ser técnico não é fácil. Tu lidas com emoções, vaidades, egos, e é difícil comandar pessoas, administrar grupos e os torcedores. E é algo que pode ser relacionado com equipes de empresas, indústrias, enfim, pois também precisam trabalhar em grupo, ter plano tático, estratégias”, exemplifica ele, que deixa um contato: crpduarte@yahoo.com.br; 51 9985-5066.
Cavalos
O hobby, hoje, segue sendo o esporte, mas não ligado a uma bola de futebol. “Meu sonho, desde pequeno, era um dia poder ter um cavalo meu. Fui criado do lado de uma cancha reta e adorava aquilo, acompanhava tudo de perto, me criei nesse cenário. Depois, acabei entrando para o futebol em 1968 e, então, me afastei, naturalmente. Mas alguns anos atrás pude realizar meu sonho”, diz ele, entusiasta da modalidade. “Com o futebol, sendo atleta, técnico ou mesmo na imprensa, eu acabei conhecendo muita gente, mas o rol dos meus amigos, hoje, é muito mais oriundo da cancha reta, no Estado inteiro, do que do futebol. Hoje, eu conheço todas as canchas retas do Estado. Se eu tiver disponibilidade de tempo, eu vou com os meus amigos a todas. Tanto que, hoje, o pessoal tem um movimento com o qual está sendo fundada a Associação Brasileira de Cancha Reta, e faço parte”, revela Duarte, um dos fundadores do sindicato dos jogadores de futebol. “Hoje, no interior, tu tens eventos assim todo fim de semana. É como no futebol, tem a Série A, Série B, Série C e carreiras em diferentes níveis e tamanhos. Isso me dá o prazer de conhecer pessoas. São pessoas que até podem me conhecer pelo futebol, mas vão acabar se tornando minhas amigas pela forma como eu, Cláudio Duarte, sou com eles por causa desse esporte”, explica, antes de ser interrompido por mais uma rádio.
O que ele diz...
“Antigamente, também tinha treino fechado. Cansei de marcar um treino para as 9h30min, os repórteres chegavam nesse horário para cobrir, e eu só realizava mais dez minutos de trabalho, longe daquilo que a gente podia mostrar, pois o treino, na verdade, já tinha começado uma hora antes. É um direito do técnico e dos atletas. Hoje, com o advento tecnológico, tu podes ver dez vídeos, e isso basta para tu saberes tudo do meu time e eu do teu. O treino fechado lhe dá a oportunidade de criar detalhes que possam surpreender o outro elenco. O jogo, hoje, é elemento-surpresa, e quem surpreende, vence. O futebol é comprovadamente, na sua história, um jogo de erros, em que quem erra menos, ganha. Evoluiu desde o início do século passado toda vez que houve alteração de estratégia, de tática, de posicionamento, tendo como motivação deixar de perder. Ninguém mudou o futebol na história para ganhar de alguém, e sim para não perder mais para alguém.”
“Se eu ganhar e não souber por que eu vou perder o próximo jogo. Se eu perder e não souber por que perdi, eu vou perder de novo. Então, as palavras ‘por que’ são muito importantes na vida diária do futebol. É preciso achar as causas de tudo primeiro: grupo, qualidade, comportamento, ambiente, falsos líderes, enfim...”
“O futebol deixou de ser só esporte e virou negócio também.”
Bate pronto
1 - Qual foi o jogo inesquecível como atleta? E time como atleta?
O do hexa do Inter, em 1974. Um domingo anterior, contra o Caxias, tive uma entorse. Saí de campo direto para o hospital. Fui engessado e fiquei assim até depois do almoço do domingo da decisão contra o Grêmio. Tiraram o gesso, ataram o pé, fiz uma “botinha” de proteção, mas meu pé não entrava na minha chuteira 42. Nesse pé, fui com uma chuteira maior, 43, que era do Luís Carlos Schneider. E eu atuei o jogo todo. Até hoje eu me pergunto como e por quê. Nos outros, eu era pago, e tinha que ir lá e fazer o melhor possível, mas nesse jogo, eu poderia não ter jogado, mas joguei. Uma força minha fez com que eu, com o pé todo roxo, jogasse, fosse importante em campo e campeão. Já um time, se eu disse que teria algum seria injusto. Todos foram importantes ou marcantes de uma forma ou outra, pois cada situação é diferente, principalmente pelos amigos que fiz.
2 - Qual foi o jogo inesquecível como treinador?
Posso citar um. Meu primeiro Gre-Nal dirigindo o Grêmio, em 1989. Assumi o clube em véspera de cair para a Segunda Divisão do Gauchão, diante do Glória. Acabei ficando, pelo que lembro, quatro meses invicto. Nos recuperamos e, por aquelas coisas do destino, me classifiquei para as finais do turno, e o primeiro Gre-Nal decisivo do turno foi no Beira-Rio. E é inesquecível por vários fatores. Então, imagine eu chegando lá, onde sempre foi a minha casa, muitos me viram crescer, ex-funcionários, agora, vestindo o uniforme do Grêmio, sete anos depois de deixar o Inter. Muitos olhando pra mim e dizendo “não acredito”. Afirmando que não queriam estar contra mim. Quando entrei no estádio, tomei uma vaia de todo o estádio. Muitos me ofendendo, me chamando de vendido. E o jogo foi 3 a 1 para o Grêmio, sendo que o Inter ainda saiu na frente, mas, no fim, no calor da emoção, muitos vieram me abraçar e dizer que estavam tristes porque o Inter havia perdido, mas também um pouco felizes porque eu tinha vencido. E isso tudo me marca até hoje como treinador, também porque venci as desconfianças dos próprios gremistas, afinal, tinha passado quase toda a minha carreira do outro lado. E olha que aquele jogo permitiu que o Grêmio ficasse pentacampeão, e depois da Copa do Brasil, com aquele mesmo time, o que me deixa com as portas abertas no clube até hoje, onde sou sempre bem recebido por todos. Em 1990, o Grêmio ganhou o hexa, não mais comigo, mas em 1991, eu voltei para o Inter para não deixar o Grêmio ser hepta. Pois consegui. E não tenho dúvida de que, se o Tricolor ganhasse aquele título, ganharia na marra o octacampeonato para emparelhar com a maior série de títulos do Colorado. Por isso tudo respeito essas duas instituições.
3 - Qual técnico você admira historicamente e atualmente?
Hoje, temos vários bons treinadores. Só aqui no Sul, e principalmente estes, são muitos, como Roger, Falcão, Dunga, Mano Menezes, Felipão, entre outros. Não posso esquecer-me dos que trabalham no interior do futebol gaúcho, que ainda estão na batalha. E quem acompanha o futebol gaúcho sabe da dificuldade que é treinar no interior. Muitos acham que é fácil. E se eu citasse um seria um crime. Ele sofre a pressão toda, a dificuldade do salário baixo, da estrutura falha e tem que montar um time, treinar este, cuidar do gramado, do vestiário, da comida, do fardamento, quase de tudo. Esse tem que ser mais respeitado.
4 - Qual é o futuro futebol gaúcho do interior?
Vou te dizer uma coisa que pouca gente concorda. O futebol do interior só está vivo, ainda, da forma como está, com muito clube de pé, apesar das dificuldades, pela ajuda do Francisco Noveletto. E não falo do Noveletto presidente da FGF, e sim do Noveletto empresário, que, por exemplo, ajuda os clubes do interior fazendo propaganda das suas lojas, dando dinheiro, dando fardamentos. E claro, também, pela ajuda da federação. Mas temos que achar uma outra subsistência, fonte de receita que não apenas essas.
5 - No Brasil, caminhamos para uma bipolarização entre Corinthians e Flamengo, com fenômenos parecidos como os que ocorreram na Espanha, Itália?
Não. Ocorre que temos o advento do pay-per-view. A TV só paga mais para esses dois porque são realmente os que têm mais torcedores e espalhados por todo o país. Na hora que tu vendes a TV por assinatura, tu vendes mais Corinthians e Flamengo. São estes que também dão mais audiência na TV aberta, e isso tudo maior retorno aos investidores. Eles, então, têm o direito de ser os que mais aparecem, mas uma bipolarização não acredito, pois, sozinhos, eles não fazem o campeonato, e o Brasil tem muitos torcedores apaixonados por seus outros clubes. O que deve, sim, ocorrer é nos estados onde também tem dois, três grandes clubes, uma rivalidade, se mobilizarem e se organizarem para angariar mais torcedores e, assim, mais recursos, inclusive da TV.
6 - Como se sabe, sempre se fala na separação da Região Sul do resto do Brasil. Tendo esse hipotético futuro país direitos comuns aos de hoje, também nos gramados, como vagas na Libertadores, seria algo bom para o futebol gaúcho e para a dupla Gre-Nal, sendo que seriam os dois maiores clubes desse “país”?
Antes do futebol propriamente dito, poderias perguntar se acho isso viável como um todo. Não apenas acho viável como acho ótimo. Trabalhei no mundo árabe e lá me perguntavam como era o hino do meu país. E eu cantava o nosso, do Rio Grande do Sul, porque lá achavam que eu nem brasileiro era. Quando eu mostrei no mapa onde eu morava, diziam: “Então, tu és argentino, uruguaio”. Minha resposta era: “De cultura, sou. Somos o único Estado que enaltece suas culturas e tradições de fato”. Somos muito mais parecidos com os hermanos do que com o resto do Brasil. Então, se fosse só o RS, já seria um país maravilhoso. Imagine, então, com os catarinenses e paranaenses, cujos estados, em boa parte, são colonizados pelos gaúchos. E para o futebol desses três estados seria perfeito. Iria fortalecer o futebol de Santa Catarina, que tem uma estrutura financeira hoje melhor do que a nossa; também o do Paraná, que é muito avançado. Teríamos um futebol do interior mais sólido; os grandes desses estados com grandes competições “nacionais”, e com os mesmos direitos, seguiríamos reencontrando os brasileiros nas competições internacionais.
7 - A rivalidade dos dois maiores clubes é, de fato, a maior do país na sua visão? E os atrapalha ou ajuda mais?
Ajuda. Onde não há rivalidade, muitas coisas, não acontecem. Mas é preciso que seja uma rivalidade respeitosa. Sabemos como aqui são rivais e um não existiria tão bem sem o outro. Um só tem um estádio bonito e bom porque o outro fez. Então, fica uma disputa que é colaborativa para ambos. A única coisa lastimável é quando o ser humano torcedor perde a sua racionalidade. Aí, o cara deixa de ser torcedor do time, deixa de ver o outro como torcedor adversário e passa a vê-lo como inimigo. E aí, culturalmente, como somos o país da impunidade, esta, em qualquer instituição ou situação, gera consequências. E isso permite, apesar de tu não teres o direito, que tu vás ao treino, ao jogo, ao estacionamento e quebre carro, o patrimônio, agrida jogadores e outros torcedores porque tua equipe perdeu. Até porque ninguém do futebol vai à tua empresa, ao teu emprego cobrar as besteiras que tu fazes lá também.
8 - Você acha que, hoje, o Brasil perdeu um pouco da sua qualidade na base, pois todos atletas são tratados como estrelas, craques, desde muito cedo?
Não. Isso é apenas um detalhe. O futebol mudou. Se tu fizeres uma análise do futebol da minha época para o que é jogado hoje, afirmo que são diferentes. O tamanho do campo de jogo, atualmente, é muito pequeno. Como medidas, ele é o mesmo, mas como espaço para o desenrolar, ele é muito mais apertado. Com o advento da preparação física, de novas táticas, planos estratégicos, faz com que seja muito mais difícil tu jogares hoje como era antes. Nossa base é boa, mas há quem diz que surgiam mais craques antigamente. Hoje, é mais difícil tu mostrares isso. Antes era uma diversão e uma boa alternativa para quem não tinha muitas. Hoje, uma aposta que pode ser carregada de responsabilidades, pois há uma gama de alternativas que podem ser melhores. Hoje, muitas vezes, é muito mais o sonho de um pai, de uma mãe, que querem vê-lo como jogador para tentar salvar a família, pois pode ganhar muito dinheiro. Na minha época, era um pequeno salário para apenas viver. Hoje, deixou muitas vezes de ser um sonho do garoto apenas. Assim como ele beneficiou e beneficia muita gente, ele judiou e judia de muita gente que tinha ou tem o sonho de ser jogador e não conseguiu, não consegue. As pessoas esquecem que o “não” vai aparecer na maioria dos casos, que não é fácil lidar com ele. E eu acompanho isso de perto desde 1968. De cada cem que sonham, 97 não vão realizar o seu sonho ou da família de sair no jornal, na TV e ganhar bem, ser respeitado. E como 99,9% dos que jogam bola vêm de origem pobre, humilde, passa a ser a última esperança de toda uma família.
Fonte texto: Rodrigo Angeli

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